Disritmia

As minhas roupas ainda estão amassadas dentro armário, compondo o caos que eu nunca fui capaz de organizar. A rua tranquila continua sendo incomodada pelo barulho da obra que nunca acaba. E nem mesmo as suas palavras podem me machucar hoje. Querido, eu estive no inferno e eu sobrevivi. Querido, eu ganhei o jogo que você criou para me torturar. Querido, eu queimei nossa a casa enquanto eu ainda estava  dentro dela e agora não nos resta nada. Querido, você não tem mais nada a perder. E eu não tenho mais medo. Eu queria te amar, encher nossa casa de flores, samambaias, tapetes coloridos e afeto. Mas tudo o que você me trouxe foi angústia. O seu semblante eternamente exausto, a sua falta de apetite para alegria, o seu sentimento de superioridade que competia com a sua profunda e amarga infelicidade. E nesse jogo assombrado, eu sempre perdia. Ninguém suspeitava em como a vida foi difícil. Você, sempre com seu sorriso cínico, despertava simpatia das pessoas menos observadoras.  Você, sempre tão polido, fazia as piadas certas e divertia todos ao seu redor. Você, sempre tão cruel, foi me esmagando pouco a pouco ao me fazer acreditar que eu sou sou fraca. E como eu poderia ser fraca se quem te salvou fui eu? Como eu poderia ser fraca se nos seus momentos de angústia eu estava ao seu lado, segurando a sua mão? E, apesar de todo o meu carinho, você nunca foi reticente em dizer palavras que machucam. Você é bom em ser mau. E eu sei que você se orgulha disso. Você se orgulha dos seus pecados. Querido, você é bom em desperdiçar a felicidade. Querido, você é péssimo em fumar escondido. Você sempre volta cheirando cigarros baratos comprados timidamente na banca de jornal. Você sempre volta resignado, porque você sempre se entrega a sua ansiedade nervosa, você sempre busca motivos no passado distante para justificar o seu comportamento autodestrutivo. O que me atraiu em você foi que você não se importava com as pessoas. Mas, querido, quem diria, você se importa demais. Querido, você jamais poderá me dizer que eu não tentei. Eu esperei por você. Paciente como só eu consigo ser. Persistente com a minha lealdade. Como um cachorro tonto, eu ficava ansiosa na hora de você voltar do trabalho para te dar um abraço que você sempre rejeitava. Você nunca tinha tempo, você nunca tinha disposição, mas querido, o que você não tem, na verdade, é coragem. Aos poucos eu fui embora. Até mesmo os cachorros desaparecem às vezes. E não adianta colocar minha foto em postes pela cidade, porque ninguém vai mais me encontrar. Porque eu não sou mais quem eu era, e essa nova versão de mim, que sorte a minha, você jamais irá conhecer. O meu novo eu está curando os restos machucados dos anos vivendo ao seu lado. O meu novo eu está ansioso e quer sair correndo para viver sem você. O meu novo eu gostaria de me levar para a noite que nos conhecemos e me mostrar o quanto na verdade você é patético. Por muito tempo eu tentei te tratar como o adulto que eu pensei que você fosse. Mas você é só uma criança assustada. Eu vou exorcizar os seus fantasmas que ainda habitam em mim. Eu não sei por onde começar mas eu sei que você acabou. Fique com os meus livros, fique com o sofá, fique com o armário roxo. Fique com o vazio dessa casa que você nunca gostou de preencher. Tire o meu nome da conta de gás. Nada de meu neste lugar. Você, que sempre me pediu para ficar mais um pouco, agora assista eu ir embora.

maçãs murchas e amargas

São Paulo, novembro

Querido,

Está frio como somente essa cidade sabe ser. Apesar do verão que se aproxima. Apesar do ano que acaba. Apesar do calor insuportável que fez poucas semanas atrás. A noite estava fria e eu não consegui dormir. Eu não consigo dormir há tempos. Apesar dos incontáveis e tóxicos remédios que eu insisto em tomar. Eles só me deixam grogue e a tornam a experiência da madrugada ainda mais perturbadora. A luz do pisca pisca (precoce?) do vizinho formava desenhos fantasmagóricos na minha parede. A única luz tolerável era a da geladeira, que eu abri e fechei infinitas vezes em busca de nada. Só havia ovos, água, queijo com viabilidade questionável e maçãs murchas. Eu sinto fome de madrugada, mas não comeria nada. Porque os remédios tornam tudo intragável, amargo. Eu quero ir embora. Cigarros queimam mas não aquecem. Cigarros seriam fumados em vão. Enquanto amanhecia eu pensava em você. Em todas as nossas palavras irresponsáveis que um dia vão nos machucar.


Eu sinto sua falta.